Pesquisas em andamento

Pesquisas em andamento

Reunião online por meio de videoconferência.

  • Apresentação de pesquisa em andamento de Marcelo Ribeiro e discussão, a partir da apresentação, do resumo expandido "Reacender a cinza: autorias rasuradas em uma nebulosa anarquívica".

Reacender a cinza: autorias rasuradas em uma nebulosa anarquívica

Resumo

Discutindo a atribuição de autoria como fundamento da inscrição do cinema no arquivo colonial, proponho um estudo comparativo de Afrique 50, Afrique sur Seine, Moi, un noir e Cabascabo, em uma nebulosa anarquívica. Entre duas constelações fílmicas, associadas, no contexto da África de colonização francesa, ao cinema colonial e ao cinema anti-colonial, essa nebulosa se caracteriza por passagens de imagens nas quais é possível reconhecer autorias rasuradas que perturbam a ordem do arquivo.

Resumo expandido

Introduzindo a noção de nebulosa, em uma deriva a partir do diálogo com a proposta metodológica das constelações fílmicas (SOUTO, 2020), este trabalho parte dos filmes Afrique 50 (1950) e Moi, un noir (1958), interrogando a atribuição de autoria – respectivamente, a René Vautier e Jean Rouch – que os inscreve na história do cinema e no arquivo colonial. Insinua-se uma nebulosa de autorias rasuradas, que é preciso reconhecer e reacender nas passagens entre imagens que os relacionam, respectivamente, com Afrique sur Seine (1955) e Cabascabo (1960).

É o próprio Vautier (1998) que relata como uma das condições de possibilidade de Afrique 50 foi a “solidariedade” de diversas pessoas, incluindo diferentes figuras políticas africanas, como Daniel Ouezzin Coulibaly, associado ao Rassemblement démocratique africain. Referindo-se particularmente a pessoas não identificadas em seu relato que tornaram possível que as bobinas filmadas na África Ocidental Francesa chegassem à França, para que o filme fosse desenvolvido e montado, fugindo da censura que lhe foi imposta pelo Decreto Laval (1934), Vautier afirma que, nesse momento de passagem de imagens, antes da montagem, “o filme por vir também se tornou um pouco seu filme” (1998, p. 41, trad. livre). Após outras fugas da censura, Vautier conclui a montagem do filme, que circulará em projeções clandestinas, com créditos que o identificam como autor do filme e do texto dos comentários.

Em Moi, un noir, pode-se reconhecer a potência de fabulação do que Jean Rouch denominava “antropologia compartilhada”. A assinatura autoral de Rouch se manifesta por meio de seus comentários em voz over e da montagem, na qual sua voz se destaca sobre a polifonia do 'comentário improvisado na imagem' (ROUCH, 2000), em que predomina a voz de Oumarou Ganda. Ao mesmo tempo, em uma conversa com Pierre Haffner, é Ganda quem afirma que sua autoria permanece rasurada no filme de Rouch, do qual ele afirma não ter gostado muito, “pessoalmente”, porque “a certa altura, tudo parecia falso; além disso, pensei que a maneira como meus pensamentos foram mostrados deveria ter sido diferente, porque, de certa forma, eu fui o co-diretor desse filme, trouxe minha parte ao filme; de um dia para o outro, estávamos trabalhando juntos, e então Rouch fez a montagem…” (apud UNGAR, 2007, trad. livre).

Assim, tanto em Afrique 50 quanto em Moi, un noir, a montagem é a instância em que se produz a rasura das autorias múltiplas que constituem os processos de cada filme. Em outras palavras: na montagem, para produzir o fogo do filme como obra, secretam-se as cinzas das autorias rasuradas – que devem ser reconhecidas, em relação a cada filme, como uma de suas condições de possibilidade e como uma perturbação suplementar de sua relação com o arquivo colonial (que, nos dois casos, já é de saída complexa e contraditória). Para que seja possível reconhecê-las, é preciso reacender as cinzas, devolvendo às autorias rasuradas parte de sua potência incendiária. É o que ocorre quando o Groupe Africain du Cinéma, composto por Paulin Vieyra, Mamadou Sarr, Jacques Mélo Kane e Robert Caristan, do mesmo IDHEC onde Vautier tinha se graduado, reinscreve uma sequência do filme de Vautier em Afrique sur Seine, contornando assim, por meio dessa passagem de imagens, a proibição de filmar na África imposta pelo Decreto Laval (FILERI, 2021). É também o que está em jogo quando Ganda refilma a narrativa do retorno do ex-combatente da Indochina, deslocando-a do filme de Rouch para Cabascabo. Neste trabalho, pretendo interrogar essas passagens de imagens e os modos relacionados de reacender as cinzas de autorias rasuradas, restituindo, com sua potência incendiária, os sentidos anarquívicos – e, portanto, fundacionais ou criacionais – da nebulosa em que se situam, entre duas constelações fílmicas: uma delas, associada ao cinema colonial (entre o exótico e o etnográfico); a outra, ao cinema anti-colonial (entre a denúncia e a imaginação da comunidade descolonizada).

Bibliografia

FILERI, Paul. The Work of Displacement in Colonial Documentary: History, Movement, and Collectivity Between the Postwar Metropole and Colonial French West Africa. Em: MALITSKY, Joshua (org.). A Companion to Documentary Film History. Hoboken: Wiley, 2021, p. 27–46.

ROUCH, Jean. O comentário improvisado na imagem. Em: FRANCE, Claudine de (org.). Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, p. 125–130.

SOUTO, Mariana. Constelações fílmicas: um método comparatista no cinema. Galáxia - Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, n. 45, set-dez, 2020, p. 153–165.

UNGAR, Steven. Whose Voice? Whose Film?: Jean Rouch, Oumarou Ganda and Moi, un noir. Em: TEN BRINK, J. (org.). Building bridges: the cinema of Jean Rouch. London: Wallflower Press, 2007, p. 111–123.

VAUTIER, René. Caméra citoyenne: mémoires. Rennes: Apogée, 1998.